A Paixão de Jesus
Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V. III, 1994.
Publicado originalmente no Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 01/04/1904.
Quem relê neste dia os evangelistas, por mais que os traga
no coração ou de memória, acha uma comoção nova na tragédia do Calvário. A
tragédia é velha; os lances que a compõem passaram, desde a prisão de Jesus até
a condenação judaica e a sanção romana; as horas daquele dia acabaram com a
noite de sexta-feira, mas a comoção fica sempre nova; por mais que os séculos
se tenham acumulado sobre tais livros. A causa, independente da fé que acende o
coração dos homens, bem se pode dizer de duas ordens.
Não é preciso falar de uma. A história daqueles que, pelos
tempos adiante, vieram confessando a Jesus, padecendo e morrendo por Ele, e o
grande espírito soprado do Evangelho ao mundo antigo, a força da doutrina, a
fortaleza da crença, a extensão dos sacrifícios, a obra dos místicos, tudo se
acumula naturalmente diante dos olhos, como efeito daquelas páginas primitivas.
Não menos surge à vista o furor dos que combateram, pelos séculos fora, as
máximas cristãs ouvidas, escritas e guardadas, alguma vez esquecidas, outras
desentendidas, mas acabando sempre por animar as gerações fiéis. Tudo isso,
porém, que será a história ulterior, é neste dia dominado pela simples narração
evangélica.
A narração basta. Já lá vai a entrada de Jesus em
Jerusalém, escolhida para o drama da paixão. A carreira estava acabada. Os
ensinamentos do jovem profeta corriam as cidades e as aldeias, e todos se
podiam dizer compendiados naquele sermão da montanha, que, por palavras simples
e chãs, exprimia uma doutrina moral nova, a humildade e a resignação, o perdão
das injúrias, o amor dos inimigos, a prece pelo que calunia e persegue, a
esmola às escondidas, a oração secreta. Nessa prédica da montanha a lei e os
profetas são confessados, mas a reforma é proclamada aos ventos da terra. Nela
está a promessa do benefício aos que padecem, a consolação aos que choram, a
justiça aos que dela tiverem fome e sede. Jerusalém destina-se a vê-lo morrer.
Foi logo à entrada, quando gente do povo correu a receber Jesus, juncando o
chão de palmas e ramos e aclamando o nome daquele que lhe vinha trazer a
boa-nova, foi desde logo que os escribas e fariseus cuidaram de lhe dar
perseguição e morte, não o fazendo sem demora, por medo do povo que recebia a
Jesus com hosanas de amor e de alegria.
Jesus reatou então os seus atos e parábolas, mostrando o
que era e o que trazia no coração. Os fariseus viram que ele expelia do templo
os que lá vendiam e compravam, e ouviram que pregava no templo ou fora dele a
doutrina com que vinha extirpar os pecados da terra. Alguma vez as imprecações
que lhe saíam da boca, eram contra eles próprios: “Ai de vós, escribas e
fariseus hipócritas, porque devorais as casas das viúvas, fazendo longas
orações...” — “Ai de vós, escribas e fariseus, porque alimpais o que está por
fora do copo e do prato, e por dentro estais cheios de rapinas e de
imundícies...” — “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque rodeais o
mar e a terra por fazerdes um prosélito, e depois de o terdes feito, o fazeis
em dobro mais digno do inferno do que vós”. Era assim que bradava contra os que
já dali tinham saído alguma vez, a outras partes, a fim de o enganar e enlear e
ouviram que ele os penetrava e respondia com o que era acertado e cabido. As
imprecações seguiram assim muitas e ásperas, mas de envolta com elas a alma boa
e pura de Jesus voltava àquela doce e familiar metáfora contra a cidade de
Jerusalém: “Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são
enviados, quantas vezes quis eu ajuntar teus filhos, do modo que uma galinha
recolhe debaixo das asas os seus pintos, e tu não o quiseste!”
A diferença que vai desta fala grave e dura àquele sermão
da montanha,
A comoção nova que achamos na narração evangélica abrange
o espaço contado da ceia à morte de Jesus. Judeus futuros, ainda de hoje, ao
passo que negam a culpa da sua raça, confessam não poder ler sem mágoa essa
página sombria. Em verdade, a melancolia do drama é grande, não menor que a do
próprio Cristo, quando declara ter a alma mortalmente triste. Era já depois da
ceia, naquele horto de Gethsemani, a sós com Pedro e mais dois, enquanto os
outros discípulos dormiam, foi ali que ele confessou aquela profunda aflição.
Tinha já predito a proximidade da morte. A aversão dos escribas e fariseus,
indo a crescer com o poder moral do Nazareno, punha em ação o desejo de o levar
ao julgamento e ao suplício, e cumprir assim o prenúncio do jovem Mestre. Tudo
foi realizado: a noite não acabou sem que, pela traição de Iscariotes, Jesus
fosse levado à casa de Anás e Caifás e, pela negação de Pedro, se visse
abandonado dos seus amigos. Ele predissera os dois atos, que um pagou pelo
suicídio e o outro pelas lágrimas do arrependimento.
Talvez ambos pudessem ser dispensados, não menos o
primeiro que o segundo, por mais que o grupo dos discípulos escondesse o Mestre
aos olhos dos inimigos. Se assim fosse, o suplício seria igualmente certo, mas
a tragédia divina não teria aquela nota humana. Nem tudo é lealdade, nem tudo é
resistência na mesma família.
A parte humana nasceu ainda, não já naqueles que deviam
amor a Jesus, se não nos que o perseguiam; tal foi esse processo de poucas
horas. Jesus ouviu o interrogatório dos seus atos religiosos e políticos. Era
acusado de querer destruir a lei de Moisés e não aceitar a dominação romana,
fazendo-se Rei dos Judeus. “Mestre, devemos pagar o imposto a César?”,
tinham-lhe perguntado antes, para arrastá-lo a alguma palavra de rebelião. A
resposta (uma de tantas palavras que passaram daqueles livros às línguas dos
homens) foi que era preciso dar a César o que era de César e a Deus o que era
de Deus. Caifás e o Conselho acabaram pela condenação; para o crime político e
para a pena de morte era preciso Pilatos. Segundo o sacerdote da lei, era
preciso que um homem morresse pelo povo.
Pilatos foi ainda a nota humana, e acaso mais humana que
todas. Esse magistrado romano, que, depois de interrogar a Cristo, não lhe acha
delito nenhum; que, ainda querendo salvá-lo da morte, pensa em soltá-lo pelo
direito que lhe cabia em tal ocasião, mas consulta ao povo, e ouve deste que
solte Barrabás, e condene a Jesus; que obedece ao clamor público, e faz a única
ressalva de lavar as mãos inocentes de tal sangue; esse homem não finge sequer
a convicção. A consciência brada contra o crime que lhe querem impor, mas a
fraqueza cede aos que lho pedem, e entrega o acusado à morte.
A morte, fecho da Paixão, termo de uma vida breve e cheia,
foi cercada de todos os elementos que a podiam fazer mais trágica. O riso deu
as mãos à ferocidade, e o açoite alternou com a coroa de espinhos. Fizeram do
profeta um rei de praça, com a púrpura aos ombros e a vara na mão. Vieram
injúrias por atos e palavras, agravação do suplício dado entre dois ladrões;
mas ainda nos falta alguma coisa para completar a parte humana daquela cena
última.
As mulheres vieram rodear o instrumento do suplício. Com
outro ânimo que faltou alguma vez aos homens, elas trouxeram a consolação e a
paciência aos pés do crucificado. Nenhum egoísmo as conservou longe, nenhum
tremor as fez estremecer de susto. A piedade era como alma nova incutida
naqueles corpos feitos para ela. Com os olhos nos derradeiros lampejos de vida,
que estavam a sair daquele corpo, aguardavam que este fosse amortalhado e sepultado
para lhe darem os bálsamos e os aromas.
Tal foi a última nota humana, docemente humana, que
completou o drama da estreita Jerusalém. Ela, e o mais que se passou entre a
noite de um dia e a tarde de outro completaram o prefácio dos tempos. A doutrina
produzirá os seus efeitos, a história será deduzida de uma lei, superior ao
conselho dos homens. Quando nada houvesse ou nenhuma fosse, a simples crise da
Paixão era de sobra para dar uma comoção nova aos que lêem neste dia os
evangelistas.